Qual a quantidade e qualidade de lípidos na ração diária
A resposta não é linear.
Quando falámos de necessidades proteicas referimos que elas poderiam ser satisfeitas por quantidades variáveis de proteínas alimentares conforme a sua qualidade (valor biológico) e que a ração proteica deveria ser de razoável ou boa qualidade para satisfazer com segurança as necessidades do organismo sem serem precisas grandes quantidades, uma vez que o excesso alimentar de proteínas acarreta prejuízos.
Quanto a lípidos, começa também a pensar-se em qualidade; de facto, questões como quantidade global da ração gorda e proporções entre vários tipos de gorduras a consumir variam conforme a natureza das gorduras da ração e a natureza dos alimentos que a compõem.
A alimentação de tipo ocidental correlaciona-se seguramente com prevalência elevada do conglomerado de doenças metabólicas e degenerativas nas populações que a adoptam. De entre os excessos e desequilíbrios deste padrão têm sido realçados alguns erros, provavelmente tão decisivos como outros menos estudados e comentados; os que nos interessam particularmente nesta altura são: excesso calórico; abuso de lípidos, que contribuem com 32% a 46% do total calórico consumido; gorduras mal escolhidas e maltratadas pelo processamento industrial e pela culinária.
As recomendações mais divulgadas indicam que os lípidos devem contribuir com 25% a 35% da ração calórica, valor bem inferior e seguramente mais saudável do que os 32% a 43% do padrão ocidental ou dos que os 34% a 46% do padrão de cafetaria. No entanto, com consumos que correspondem a mais de 30% das calorias ingeridas a ocorrência de carcinomas é significativamente maior em populações com vida sedentária que preferem gorduras saturadas e óleos vegetais ricos de ácidos gordos polinsaturados, como girassol, soja, etc. A ocorrência de doenças metabólicas, degenerativas vasculares e carcinomas é insignificante entre populações muscularmente activas que consomem entre 28% e 32% das calorias na forma de gorduras ricas de ácidos moninsaturados (azeite). Consumos gordos inferiores a 20% podem prejudicar o aprovisionamento de vitaminas lipossolúveis e de minerais, nomeadamente de cálcio, a evacuação da vesícula biliar e o peristaltismo intestinal. Conjugando estas e outras informações podemos fixar a ração lipídica de populações de regiões temperadas entre 20% e 32% do total calórico. Consumos de 20% a 25% são suficientes e possivelmente mais adequados para indivíduos sedentários pouco cuidadosos com a natureza das gorduras que utilizam. Consumos de 25% a 32% revelam-se seguros para indivíduos com maior dispêndio energético, que sejam fracos consumidores de carnes de bovino e de gorduras saturadas e que prefiram azeite para temperar e cozinhar.
Os ácidos gordos saturados ocorrem naturalmente nos alimentos e são geralmente ligados à aterosclerose porque os regimes alimentares em que abundam correlacionam-se epidemiologicamente com ocorrência elevada da doença aterosclerótica e com acréscimo das taxas sanguíneas de colesterol total e de LDL/colesterol, como já vimos, agressivas para o aparelho circulatório.
No entanto, os ácidos gordos saturados não são aterogéneos por igual. Particularmente nocivos são os mirístico e palmítico; o esteárico, de cadeia longa tal como o mirístico e palmítico, é bem menos aterogéneo porque o organismo é capaz de transformar parte dele em ácido oleico, um moninsaturado. Os ácidos gordos saturados de cadeia curta, butírico e caproico, até reduzem a produção de LDL/colesterol. Os ácidos gordos de cadeia média não são, ao que se sabe, aterogéneos.
Em consequência e com rigor, não podemos meter no mesmo saco todos os ácidos gordos saturados. Ainda mais incorrecto é separar, para um lado, gorduras vegetais e, para outro, animais; de facto, as gorduras animais com maior proporção de ácidos gordos saturados aterogéneos são riladas e gorduras da carne de vaca. Entre as vegetais, as margarinas, sobretudo as duras, também são ricas de ácidos gordos aterogéneos. Pelo contrário, as gorduras de peixe e aves não o são.
Os ácidos gordospolinsaturados são constituintes imprescendíveis de membranas celulares e reguladores de activíssimas cascatas metabólicas; a carência manifesta-se por graves defeitos do desenvolvimento e da maturação de variadas estruturas orgânicas e por numerosas deficiências funcionais. A natureza das manifestações de carência, do mesmo tipo das que dependem de carências vitamínicas, fez pensar durante anos que constituíssem uma vitamina e, de facto, foram designados por vitamina F.
Os ácidos gordos polinsaturados no seu conjunto são considerados essenciais, ou seja, indispensáveis na alimentação, embora verdadeiramente essencial seja o linoleico porque o organismo é capaz de formar os restantes — linolénico, araquidónico, etc. — quando dispõe de linoleico suficiente. No entanto, o organismo absorve todos os ácidos gordos polinsaturados presentes nos alimentos e engrena-os nas cascatas metabólicas directamente nos pontos onde desenvolvem as suas actividades específicas. Esta questão é de transcendente importância; de facto, um regime alimentar rico de ácido linoleico privilegia as cascatas metabólicas directamente dele dependentes (da série ómega 6) em detrimento relativo das cascatas metabólicas que se encetam pelo ácido alfa-linolénico (da série ómega 3). É fundamental o equilíbrio entre as duas séries para que não haja competições e predomínios anómalos dos efeitos de natureza estrutural e reguladora própria de cada série. Os efeitos próprios da série ómega 6, vitais e imprescindíveis, quando incrementados para além do normal, mercê de consumos elevados, proporcionam envelhecimento celular precoce, alterações estruturais de membranas, modificações do código genético com anomalias da multiplicação celular e indução e promoção de carcinomas, formação preponderante de compostos hormonais que estimulam a adesividade e agregação das plaquetas entre si e às paredes vasculares, etc. Quando em excesso, os ácidos gordos da série ómega 3, mais abundantes nas gorduras de peixes, desenvolvem esbatidamente os efeitos a nível celular dos ómega 6 e desencadeiam alterações da coagulação sanguínea com tendência a hemorragias.
Regimes alimentares ricos de ácidos gordos polinsaturados têm sido insistentemente recomendados desde os anos 50 porque se opõem aos efeitos hipercolesterolemiante e aterogénico dos regimes ricos de ácidos gordos saturados. Actualmente não é mais de insistir com esta recomendação. De facto, o consumo maciço e prolongado de óleos de sementes promove as alterações graves referidas atrás (em grande parte relacionadas com a formação endocelular excessiva de radicais livres de oxigénio, em especial quando faltam antioxidantes: vitaminas E, C, selénio, caroteno e fitoquímicos antioxidantes) e perde a sua eficácia antiaterogénica porque reduz o HDL/colesterol em paralelo com a redução do colesterol total, baixa a eficácia dos sistemas de defesa imunitária e eleva a incidência de cálculos vesiculares. Estes regimes ricos de ácidos polinsaturados da série ómega 6, de proveniência vegetal (soja, milho, girassol, etc), propostos com base em considerações teóricas, não têm suporte epidemiológico. Na verdade, tanto quanto sabemos, nunca nenhuma civilização actual ou passada adoptou um tipo de alimentação equivalente.
Não se conhecem bem as necessidades de ácidos gordos essenciais nem as proporções ideais de consumo da série ómega 6 e ómega 3. As recomendações americanas referem-se apenas a ácido linoleico e indicam que deve contribuir com 3% do total calórico nas fórmulas infantis e com 2% do total calórico na alimentação corrente de adultos. Portanto, bem menos do terço da ração lipídica, tão repetidamente aconselhada. Não sabemos ainda que porção de ácidos gordos da série ómega 3 deve ser fornecida por uma alimentação saudavelmente equilibrada.
Os ácidos gordos moninsaturados merecem grande interesse da investigação. Durante anos remetidos pelos americanos para a posição de meros espectadores não intervenientes na luta entre bons (polinsaturados) e maus (saturados), são hoje os heróis da fita.
O ácido oleico, característico do azeite e abundante no porco e na galinha, é o moninsaturado tradicionalmente mais consumido na bacia mediterrânica. Diminui manifestamente a fracção LDL/ /colesterol (tanto como os polinsaturados) com a vantagem de não baixar o HDL/ /colesterol, de não lesar as células através da excitação produtiva de radicais livres de oxigénio e de poupar para funções vitais os ácidos gordos polinsaturados que ocorrem naturalmente em alimentos comuns, sem necessidade de correr intencionalmente atrás deles em óleos, margarinas dietéticas e cápsulas de óleo de salmão.
Em vez da norma clássica de repartir a ração gorda em partes iguais pelos três tipos de ácidos gordos, hoje preconiza-se que os moninsaturados devem concorrer com mais ou menos metade, com o resto a ser repartido por saturados e polinsaturados.
Todos os ácidos gordos insaturados (mono e poli) têm tendência a fixar oxigénio nas duplas ligações, ou seja, a rançar. A rançagem é acelerada por luz, calor e certos metais, nomeadamente cobre; daí que alimentos com gordura (presunto, sardinhas de barrica, toucinho, etc.) e azeite, óleos e manteiga devam guardar-se em locais frios, ao abrigo da luz e em embalagens inertes.
Batatas fritas de pacote na montra de uma mercearia rançam ao fim de 24 horas. Quando se usa o mesmo óleo para fritar várias vezes ele oxida-se em cada fritura, e tanto mais quanto mais polinsaturado. Os moninsaturados resistem melhor. Além de rançar, o aquecimento acima de 100°C satura parcialmente os insaturados e modifica a sua arquitectura (formam-se ácidos gordos trans e eis anómalos), o que altera a sua distribuição pelo organismo e as funções em que participam.
Os Triglicéridos fixam facilmente moléculas químicas estranhas, sejam sabores, corantes ou outros aditivos alimentares. Daí que uma galinha doméstica saiba diversamente de uma de aviário; e que não utilizemos gaivota porque sabe a peixe.
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